“Wonder Egg Priority”: Representatividade Trans

Olá meus fujodanshis! Há muito tempo eu quis assistir o anime Wonder Egg Priority (ワンダーエッグ・プライオリティ), um original da CloverWorks lançado em janeiro de 2021 com doze episódios de quase meia hora e um extra de uma hora, pelo quão popular ficou e também pela temática me chamar atenção. E como na última sexta-feira (31/03) foi o dia internacional da visibilidade trans, achei um tema perfeito para trazer aqui. Caso não esteja por dentro, vem que eu te explico.

Sobre o Anime

A sinopse honestamente não ajuda muito no quesito saber o que esperar, precisando passar alguns episódios para juntar as peças. Wonder Egg Priority não se distancia muito do gênero de garotas mágicas, onde as personagens principais vivem duplamente entre suas vidas normais e lutas épicas contra monstros junto de seus companheiros, com um misto de drama e fantasia.

Sendo fruto da Cloverworks, que é bem aclamada pelas suas animações de alta qualidade e que marcam o público, apesar de sofrer atrasos e outros problemas por vários motivos e principalmente pela pandemia de COVID-19, Wonder Egg Priority rapidamente se tornou um favorito.

O anime consegue juntar essa vibe vibrante e colorida com as dos assuntos tratados de uma forma interessante, trazendo uma leveza saudável mas mantendo a seriedade e respeito. Afinal, tudo é apresentado pelos olhos de garotas de 14 anos. Apesar de todas as lutas, todos os plot twists, são apenas crianças tentando se encaixar no mundo.

O Verdadeiro Vilão

Infelizmente, esses temas, diferente dos mundos e monstros fantasiosos, são reais – e preocupantes. Muitas cenas podendo conter gatilhos, ilustram como o trauma, seja emocional ou físico, te leva em uma espiral de onde muitas das vezes, é extremamente difícil sair. Uma espiral, porque seus sentimentos são invalidados toda vez que você decide enfrentar, porque sua voz é silenciada toda vez que tenta falar, e no final, você está sozinho com sua dor. Especialmente para mulheres. Isso não é exagero, é fato.

https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/noticias/2022/eleicoes-2022-periodo-eleitoral/brasil-tem-mais-de-31-mil-denuncias-violencia-contra-as-mulheres-no-contexto-de-violencia-domestica-ou-familiar/ “No primeiro semestre de 2022, a central de atendimento registrou 31.398 denúncias e 169.676 violações envolvendo a violência doméstica contra as mulheres”

Essas feridas, são abertas a todo momento, o que nos levam a outro tipo de tragédia. O suicídio. Segundo dados do Ministério da Saúde, em 2020 foram registrados no Brasil 8.886 casos de suicídio entre mulheres, o que representa uma taxa de 4,8 suicídios por 100 mil habitantes do sexo feminino. De acordo com dados do Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM) do Ministério da Saúde, em 2019, a taxa de suicídio de jovens de 15 a 19 anos foi de 5,7 casos a cada 100 mil habitantes.

As garotas têm modos diferentes de lidar com o luto e problemas pessoais, seja se distanciando do mundo como Ai ou usando a automutilação como escape no caso de Rika. Ambos assuntos bem trabalhados na minha opinião, por experiência pessoal. Eu queria dar ênfase em seu desenvolvimento. Na verdade em uma diferença interessante entre as duas, que as impacta diretamente.

Apesar de ambas serem filhas de mulheres solteiras, seu relacionamento com elas traz uma questão importante sobre saúde mental. A mãe de Ai pode ter dificuldade de entender o que se passa na cabeça da filha, mas sabe que seu papel é a apoiar – como quando Ai decide não ir à escola de última hora –, cuidar e incluir – como fazer questão de saber a sua opinião sobre seu novo relacionamento –.

Já a relação de Rika com sua mãe… Rika não tem liberdade de ser criança ali, sendo responsável por si mesma na maioria de sua vida. E apesar de sempre se machucarem, sabemos que se importam uma com a outra, trazendo esse lado humano e multifacetado de relacionamentos, principalmente com familiares, coisas que não deveriam ser preocupações de crianças.

Não conseguir amar, mas não conseguir odiar, ser ferido mas também cuidado, nenhuma solução parecendo apropriada. E no fundo dessa espiral… Reside a vontade de acabar com a dor. A “tentação da morte” como o anime descreve. Às vezes as coisas são mais complicadas do que imaginamos ou enxergamos, e sabemos muito bem como um ambiente familiar tóxico pode empurrar alguém para mais perto da ponta do penhasco.

Em 2021, houve 200 casos de suicídio – não tentativas! – entre crianças de 5 à 14 anos no país, o maior número registrado pelo Ministério da Saúde desde 1996. O que você, com essa idade, estava fazendo? No caso dessas crianças… O que parecia ser a única saída. Infelizmente, não surpreende pelo fato do Brasil ser o 8° país com o maior índice de suicídio NO MUNDO, com estimativa de 24 por dia. As tentativas não sucedidas têm números muito mais altos. A falta de preparo, conhecimento e apoio não é um problema apenas dos pais, é da escola, do governo, de todos.

O Caminho para o Fundo é um Empurrão

Ser mulher nunca foi fácil, e nunca é, desde o nascimento até a morte, dores muitas vezes passadas de mãe para filha e assim adiante. Para mulheres e jovens da comunidade LGBTQIA+ muito menos.

https://antrabrasil.files.wordpress.com/2023/01/dossieantra2023.pdf Mesmo em meio a tanta dificuldade na busca por essas informações em 2022, das 131 vítimas de assassinatos localizadas e consideradas nessa pesquisa, 130 eram travestis/mulheres trans, deixando nítido que a motivação, assim como a própria escolha da vítima tem relação direta com a identidade de gênero (feminina) expressa pelas vítimas, que representam 99% dos casos”

E aqui chegamos em Momoe, nossa personagem transgênero do programa, amor da minha vida e o quão impactante sua representatividade. Pra começar, eu nunca tive esse momento de olhar para um personagem e falar “meus santos deuses, eu existo!” da forma como me enxerguei em Momoe. Suas inseguranças e assertividade em se manter firme diante o que os outros pensam de si apesar de cautelosa, me baquearam.

Nos primeiros episódios, vimos como ela pausa quando perguntam seu nome, mas desiste e usa seu deadname. Situação clássica pra quem é transgênero, infelizmente. Exige muita coragem para ser você mesmo quando tudo e todos parecem preferir o contrário. Aos poucos, ela ganha confiança, e a diferença é gritante, a validação de suas amigas e outras pessoas, mesmo que pequena, lhe dá alívio, sem precisar se esconder mais. Isso também não é exagero, saca só:

Precisamos falar sobre o Suicídio das pessoas Trans! ” Estima-se que 42% da população Trans já tentou suicidio … Simplesmente não se pode negar tratamento a um grupo altamente estigmatizado que tem uma prevalência de 42 a 46% de tentativas de suicídio, comparado a 4,6% da população em geral.”

Pelo fato de também ser transgênero, senti aquele misto de felicidade e agonia por ter minhas dores tão bem retratadas de uma forma que não se vê normalmente em anime. Certas coisas são apenas detalhes, mas que fazem a diferença. Momoe não é uma representação perfeita e completa, mas o fato de não se encaixar em muitas das idealizações comuns, como o fato de não se sentir segura com sua expressão de gênero, torna a personagem mais genuína e complexa.

Principalmente pelo seu encontro com Kaoru Kurita no final da série. Kaoru Kurita é um garoto transgênero, que logo simpatiza com Momoe. Se antes eu me senti representado por Momoe, agora ter um garoto trans? Dizer que me emocionei foi pouco.

Pode parecer meio estranho sua aparição já que todos os Wonder Eggs são garotas, e eu entendo, mas eu acredito que essa inclusão foi para confirmar a visão dos diretores de que SIM, o objetivo era ter uma personagem transgênero como protagonista, não apenas mais um show queer-baiting, impossível de não perceber agora com dois personagens, um usando uma jaqueta da bandeira transgênero que depois vemos Momoe usando, de uma forma que seria difícil fazer fora do foco da história mas não deixando espaço para coincidências – e digo mais!

A representação não acaba aí, apesar de ser mais sutil. Afinal, nossa “antagonista” é fruto dos dois fundadores, literalmente. Podia ter tido um desenvolvimento melhor do que o velho “ambos estão apaixonados pela garota mas um é escolhido, sendo que eles já eram uma família”? Sim, eu acho que sim, mas a relação dos dois não me parece nada platônico, de acordo com várias indicações dadas durante o anime.

Um Longo Caminho

Claro, Momoe e Kaoru não são os primeiros personagens transgênero em anime, pelo contrário, existe um grande leque tanto em anime quanto mangá hoje em dia. O que torna Wonder Egg Priority inovador não é apenas uma garota transgênero como protagonista, mas a desmistificação da vivência trans, com todas suas lutas e medos, sem deixar de lado sua personalidade e força.

Lembrando que Wonder Egg Priority pode ser assistido pela Crunchroll e não temos informações sobre uma provável continuação. Eu digo provável porque eu sou brasileiro e não desisto nunca, além que seria uma pena um anime com tanto potencial, afinal estamos falando de um original com direção e produção incríveis, acabar em um final aberto. Amém, irmãos?

Eu poderia passar horas falando sobre Wonder Egg Priority, e eu juro que tentei manter os spoilers no mínimo. Representatividade é apenas um degrau para a inclusão, visibilidade e documentação de problemas seríssimos como o abuso, violência, negligência, preconceitos e diversos outros, um passo para a resolução e prevenção de mais tragédias. Às vezes parece que nada vai mudar, e nosso sofrimento nunca acaba. É fácil falar de esperança quando lutamos tanto pelo simples direito de viver, eu saberia.

Mas vou te contar um segredo. A esperança não é um sentimento, é uma habilidade, é algo que deve ser trabalhado e alimentado. Seja por raiva, desespero, luto ou o pensamento de que ninguém deve sofrer como sofremos, estar aqui já é o maior ato de resistência. Nossa mera existência, já é motivo de orgulho.

Eu estou orgulhoso de você, por estar aqui mais um dia. Caso precise de ajuda, não hesite.